O Balcão Único do Prédio (BUPi) nasceu de uma necessidade premente e de uma ambição louvável: mapear o território nacional, simplificar o registo de propriedades e valorizar o património de milhares de portugueses.
A plataforma digital, gratuita e acessível, inquestionavelmente inspirada no Geopredial®, parece ser a resposta moderna a um problema antigo. No centro deste processo está a Representação Gráfica Georreferenciada (RGG), o ato de desenhar o mapa da nossa propriedade. E é aqui, na aparente simplicidade de um clique, que reside uma armadilha com consequências jurídicas e financeiras devastadoras. A plataforma (mais precisamente a estrutura de missão) convida o proprietário a realizar a RGG por fotointerpretação, delineando os limites do nosso prédio sobre um ortofotomapa. Para o proprietário bem-intencionado, a tentação é enorme. Parece fácil, rápido e, acima de tudo, gratuito. Mas será essa simplicidade sinónimo de segurança? A resposta, na esmagadora maioria dos casos, é um rotundo não. A segurança técnica deste método é, na melhor das hipóteses, sofrível. A fotografia aérea não mostra o marco de pedra escondido sob a copa de um carvalho, não revela a vedação que foi movida há uma década em acordo com o vizinho, nem distingue a linha exata da linha de água que alterou o seu curso. O que no ecrã parece ser um limite óbvio, no terreno pode ser uma fonte de ambiguidade e conflito. Este método transforma o proprietário num cartógrafo amador, pedindo-lhe que assuma uma responsabilidade técnica para a qual não tem, regra geral, formação, nem consciência das implicações jurídicas. O problema agrava-se exponencialmente quando percebemos o que acontece a seguir. Esta RGG, uma vez validada, não é apenas um desenho. Havendo concordância do desenho com os desenhos vizinhos vai passar a ser considerado cadastro e com isso adquire a presunção legal de veracidade. Isto representa uma autêntica bomba-relógio jurídica. Um limite mal desenhado hoje, por desconhecimento ou por simples erro de interpretação da imagem, transforma-se na verdade legal de amanhã. Se surgir um conflito, o ónus da prova inverte-se: caberá a quem se sente lesado lutar contra uma presunção de lei para provar que o mapa oficial está errado, uma batalha judicial longa, incerta e extraordinariamente dispendiosa. E é aqui que a "falsa economia" do clique fácil revela o seu verdadeiro preço. Evitar o custo da georreferenciação material, ou seja, com a deslocação do técnico ao terreno, que ronda, tipicamente, algumas centenas de euros — pode parecer uma poupança. No entanto, o custo de "curar" o erro mais tarde é incomportavelmente superior. Uma retificação amigável, quando for possível, implicará já custos significativos, não só com a intervenção do técnico, mas também com emolumentos de registo. Se a questão escalar para um litígio judicial, falamos de custas judiciais, honorários de advogado e peritagens que podem ascender a muitos milhares de euros. Não nos enganemos. O BUPi é uma ferramenta valiosa, mas a sua utilização exige uma diligência à altura das consequências. Salvo situações muito específicas de limites perfeitamente visíveis e inequívocos, o proprietário nunca deveria promover a RGG sem o recurso a um técnico habilitado que se desloque ao local. A escolha prudente, segura e, em última análise, mais económica é encarar este processo não como uma mera formalidade administrativa, mas como a definição permanente do seu património. O investimento num na georreferenciação presencial não é uma despesa; é um seguro. Um seguro contra futuros conflitos e, acima de tudo, pela paz de espírito de saber que os limites da sua propriedade estão defendidos, não por um clique apressado, mas pela certeza de um trabalho sério, quer do ponto de vista geográfico, quer jurídico.
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Diz o RJCP que ‘Cadastro predial’ é ‘o registo geográfico e administrativo, metódico e atualizado, de aplicação multifuncional, no qual se procede à identificação e caracterização dos prédios existentes em território nacional”; Prédio é “a porção delimitada do solo juridicamente autonomizada, abrangendo as águas, plantações, edifícios e construções de qualquer natureza nele incorporadas ou assentes com carácter de permanência”; por fim que um prédio é caracterizado no cadastro pelo “conjunto de dados referentes à localização administrativa e geográfica, configuração geométrica e área do prédio” Em suma, podemos dizer que o cadastro predial é a repreensão da configuração geométrica das porções delimitadas do solo do território português juridicamente autonomizadas! O Regime Jurídico do Cadastro Predial (RJCP) foi publicado há dois anos e continua a ser desconhecido da generalidade dos profissionais ligados ao ‘imobiliário’, mas também dos diversos setores do Estado. Como é habitual em qualquer reforma ainda muito está por implementar, nomeadamente os procedimentos de inclusão de carta cadastral, não se mostrando possível, pelo menos por agora, elaborar um guia mais completo sobre o RJCP, optando por abordar das operações de conservação de cadastro, ou, dito de outra forma: Como é que se corrige ou atualizada o cadastro? Como já há muito vinha a defender, pelo menos desde que, na Câmara dos Solicitadores, lancei as bases do projeto Geopredial®, as dificuldades do cadastro predial há muito que não são de natureza geográfica, mas sim de natureza jurídica. Não é descabido de todo afirmar que o problema do cadastro também tem uma dimensão sociológica, com vários aspetos importantes sobre a forma como os cidadãos lidam com sistemas burocráticos e legais, que muitas vezes podem ser complexos, morosos e desajustados da realidade (seja a realidade económica, social e cultural). O problema de execução e conservação do cadastro predial vão muito além da questão puramente técnica ou legal; reflete também um comportamento sociológico em que as dificuldades do sistema levam os cidadãos a buscar soluções alternativas ou a postergar a resolução formal. Isso cria um desajuste entre o que seria o ideal, do ponto de vista da administração pública, e o que os cidadãos efetivamente fazem para adaptar-se às circunstâncias. Em muitos casos, isso pode resultar em uma informalidade generalizada, o que pode gerar problemas futuros, como disputas de propriedade, consequências tributárias e dificuldade na regularização de operações urbanísticas. Temos a consciência que nem sempre o que é projetado está refletido no que é construído, sendo habitual ajustes - mais ou menos profundos - seja porque foram encontrados problemas técnicos na execução ou porque houve necessidade de acomodar interesses específicos. Estas “adequações” - legais ou não legais - existem e estão materializadas, não podendo deixar de ser acomodadas no cadastro predial, sob pena de tornar o cadastro num conto de fadas… uma história que pouco tem a ver com a realidade. Nos concelhos onde vigorou o Cadastro Geométrico da Propriedade Rústica (CGPR), acrescem os problemas que resultam de ter sido realizado há mais de 50 anos, com escala e soluções técnicas de suporte que não são compatíveis com as atuais, e ainda do facto de os processos de conservação (os então processos de reclamação administrativa – PRA) nunca terem verdadeiramente funcionado. A imagem seguinte é demonstrativa do desfasamento do cadastro em relação à realidade material, já que cada polígono ali representado (matriz cadastrais da propriedade rústica) há mais de 2 gerações que foram urbanizadas, mantendo-se congeladas no tempo! Com o RJCP é introduzida a figura do Técnico de Cadastro Predial (TCP) que tem por missão navegar neste mar de pequenos e de grandes problemas, sendo que o ‘mapa’ que lhe é apresentado não consegue detalhar como vai abordar os problemas concretos.
Para todos aqueles que estavam habituados aos processos de reclamação administrativa – PRA, esqueçam a metodologia anteriormente adotada. É imperativo que percebam que deixou de existir o cadastro geométrico da propriedade rústica! O cadastro deixou de representar prédios rústicos e passa a representar ‘prédios’… as tais “porções delimitadas do solo do território português juridicamente autonomizadas”. Embora o cadastro predial represente uma forma de abordagem geométrica / espacial para a identificação dos prédios, essa representação está intrinsecamente ligada e condicionada à realidade material e às normas legais que regem os direitos reais sobre imóveis. Isso significa que, enquanto a estrutura trigonométrica pode ser utilizada para calcular medidas e identificar limites, mas está inevitavelmente subordinada ao direito. Assim, qualquer representação do cadastro precisa refletir com precisão as características materiais da propriedade, como os direitos, restrições e delimitações estabelecidas pelo direito. A conformidade com a realidade é fundamental para garantir a segurança jurídica e a efetividade das relações patrimoniais, ressaltando que a matemática deve atuar como uma ferramenta para a implementação das necessidades legais e não como um princípio autônomo que determina a realidade jurídica. A rigidez dos números vai inevitavelmente condicionar o direito, mas essa rigidez não é absoluta, cabendo ao técnico de cadastro conseguir unir as diversas dimensões do problema. Procura uma caderneta de um prédio urbano e repara que nos dados de avaliação aparece um "par de coordenadas" X e Y. Estas coordenadas representam a localização aproximada do prédio, ainda que, como vamos ver mais à frente, é habitual estarem desfasadas da realidade. No exemplo acima são apresentadas as coordenadas X=176.456,00 e Y=509.151,00. Mas afinal o quer isto dizer? Como é que eu sei onde está o prédio? Posso utilizar estas coordenadas no google maps? AS COORDENADAS NAS CADERNETAS PREDIAIS ![]() As coordenadas que constam nas cadernetas prediais utilizam um sistema de referência obsoleto, que também ainda é utilizado por alguns municípios, chamado "Datum Lisboa " e que foi estabelecido nos finais do século XIX", mais precisamente o "Datum Lisboa/ Hayford-Gauss com falsa origem - Coordenadas Militares". Evitando entrar em detalhes demasiado técnicos e inúteis para para a esmagadora maioria das pessoas, cabe explicar que este sistema de referência está representado no plano tendo a sua origem (coordenada 0,0) algures no oceano atlântico a sul / poente e sagres. Como é que eu sei onde está o prédio? Para saber concretamente onde está localizado o prédio era necessário que tivesses um mapa com o ponto origem (coordenadas 0,0), mas como não tens esse mapa temos de encontrar uma solução que é a de converter a coordenada para um sistema mais comum, no caso converter para o sistema de coordenadas utilizado habitualmente no google maps, ou seja o sistema global WGS84. Esta conversão é complexa, mostrando-se necessário utilizar uma ferramenta que realize esse cálculo. Existem várias ferramentas gratuitas, mais ou menos complexas e mais ou menos precisas, mas eu próprio, com recurso as soluções de AI, criei mais uma e que está disponível aqui. Tem em atenção o seguinte: a) As conversões entre sistemas de coordenadas podem apresentar pequenas divergências devido a diferentes parâmetros de transformação, métodos de cálculo e arredondamentos. As diferenças são normalmente inferiores a alguns metros, mas devem ser consideradas em aplicações que exijam alta precisão; b) As coordenadas que constam das cadernetas estão muitas vezes erradas, muito particularmente quanto se tratam de prédios que foram objeto das avaliações gerais, sem que tivesse sido apresentada planta de localização. Nestes casos a coordenadas é a do código postal ou o centro da localidade ou freguesia. O SISTEMA DE COORDENADAS PT-TM06-ETRS89 O ETRS89 (European Terrestrial Reference System 1989) é o referencial geodésico europeu, coincidente com o ITRS na época 1989.0 e fixado à parte estável da Placa Euro-Asiática, conforme resolvido pela Subcomissão EUREF da IAG em 1990. Em Portugal Continental, o ETRS89 foi estabelecido por três campanhas internacionais (1989, 1995 e 1997) que o ligaram à rede europeia, seguidas da observação por GPS de toda a Rede Geodésica de 1.ª e 2.ª ordens, ajustada às coordenadas dessas campanhas iniciais. É o sistema oficial de referência para o território continental, adotado como PT-TM06/ETRS89 (EPSG:3763) para mapeamento topográfico em média escala. Nos arquipélagos aplicam-se sistemas específicos. Mais uma vez sem entrar em pormenores técnicos a principal diferença entre os sistemas PT-TM06-ETRS89 e o Datum Lisboa Militar reside no ponto de origem. No sistema PT-TM06-ETRS89 o ponto de origem é algures no centro do território continental (ver no google maps) ![]() Voltando às coordenadas iniciais (X=176.456,00 e Y=509.151,00) quando convertidas para PT-TM06-ETRS89 temos como resultado: X: -23546.45 Y: 209148.75 Repara que como o X tem sinal (-) quer dizer que está à esquerda do eixo (poente), no caso 23 quilômetros, 546 metros e 45 centímetros. O eixo Y é positivo, estando a 209 quilômetros 148 metros e 75 centímetros a norte do ponto central. Introdução O regime jurídico do domínio público hídrico em Portugal, particularmente no que se refere às margens dos cursos de água, tem suscitado crescente controvérsia jurídica e doutrinária. A aplicação de faixas uniformes de proteção, que podem atingir os 50 metros em determinadas situações, levanta questões fundamentais sobre a validade histórica e constitucional deste enquadramento normativo. A presente análise procura examinar as origens históricas desta regulamentação e identificar os potenciais vícios constitucionais que podem comprometer a sua aplicação, oferecendo uma perspectiva crítica sobre um dos temas mais complexos do direito administrativo português contemporâneo. As Origens Históricas: O Decreto Real de 1864 A génese da atual configuração do domínio público hídrico radica no Decreto Real de 31 de dezembro de 1864, promulgado durante o reinado de D. Luís I. Este diploma estabeleceu que seriam públicos "os portos de mar e praias, os rios navegáveis e flutuáveis com as suas margens". Contudo, uma análise contextualizada deste decreto revela que a sua finalidade primordial não se relacionava com a proteção ambiental ou a gestão sustentável dos recursos hídricos, conceitos ainda inexistentes na época. O diploma inseria-se num quadro mais amplo de regulamentação das vias de comunicação, numa época em que Portugal vivia os primórdios da revolução industrial. Em 1864, o país contava apenas com duas linhas férreas, a primeira viagem de comboio havia sido realizada há menos de uma década, e ainda faltavam dois anos para a invenção do automóvel. Neste contexto, a navegação fluvial, ainda que marginal na economia portuguesa, representava uma via de comunicação que o Estado procurava regular em conjunto com as estradas, caminhos de ferro e telegrafia. A referência às "margens" deve ser interpretada à luz da sua utilidade para o transporte fluvial da época. Para "remontar" os rios, as embarcações eram frequentemente puxadas a partir de terra, com pessoas ou animais que caminhavam ao longo das margens utilizando cordas e cabos. Esta realidade prática explica a inclusão das margens no regime de domínio público, não como medida de proteção ambiental, mas como necessidade operacional do transporte fluvial. A Evolução Legislativa e os Excessos do Século XX A interpretação progressivamente expansiva do decreto de 1864 culminou no Decreto-Lei n.º 468/71, promulgado durante o período ditatorial. Este diploma estabeleceu faixas de proteção de dimensões variadas: 50 metros para margens das águas do mar e águas navegáveis ou flutuáveis sujeitas à jurisdição das autoridades marítimas, 30 metros para as restantes águas navegáveis ou flutuáveis, e 10 metros para águas não navegáveis nem flutuáveis. O artigo 8.º deste decreto-lei introduziu uma presunção particularmente gravosa, exigindo que os proprietários provassem documentalmente a titularidade privada dos terrenos antes de 31 de dezembro de 1864. Esta inversão do ónus da prova constituiu uma alteração substancial do regime jurídico da propriedade, impondo aos particulares a demonstração de direitos que, segundo o direito comum, se presumem. Crucialmente, nenhuma norma anterior ao decreto de 1864 havia estabelecido faixas de domínio público com as dimensões posteriormente consagradas. A Portaria de 16 de maio de 1898 reconhecia expressamente que "em muitas, se não todas, as bacias hidrográficas do país, muitos terrenos submergidos, banhados ou atingidos pelas marés e os seus produtos naturais, têm estado sempre no domínio e posse, incontestada e pública, de indivíduos particulares". As Contradições da Prática Administrativa Contemporânea A aplicação prática do regime de domínio público hídrico revela contradições fundamentais que questionam a sua validade jurídica. Múltiplas circunstâncias merecem particular destaque pela sua relevância constitucional e pela evidência inequívoca que fornecem sobre o reconhecimento tácito da titularidade privada pelo próprio Estado. Ausência de Posse Efetiva Em primeiro lugar, o Estado nunca procedeu à tomada de posse efetiva das alegadas margens de domínio público. O domínio público pressupõe, por definição, o exercício de posse por parte da entidade titular. A ausência desta posse compromete a própria natureza jurídica do bem como pertencente ao domínio público. Contradição Tributária O Estado continua a tributar os proprietários destes terrenos através do imposto municipal sobre imóveis e outras contribuições. Esta prática constitui um reconhecimento implícito da titularidade privada, criando uma contradição insanável com a alegação simultânea de domínio público. Reconhecimento Cadastral da Propriedade Privada Particularmente reveladora é a prática do cadastro predial, através da qual o próprio Estado procede ao reconhecimento oficial dos limites dos prédios, incluindo as áreas supostamente integradas no domínio público. O cadastro constitui um ato de soberania pelo qual o Estado define e reconhece oficialmente a extensão da propriedade privada. Esta prática administrativa evidencia que os serviços cadastrais do Estado não aplicam na prática o regime de domínio público que a legislação formalmente estabelece. A delimitação cadastral de prédios que incluem as alegadas margens de domínio público constitui reconhecimento formal da titularidade privada sobre essas mesmas margens. Licenciamento de Construções e Cobrança de Taxas Ainda mais contraditória é a prática sistemática de licenciamento de construções nestas áreas, acompanhada da cobrança das respetivas taxas municipais. O Estado licencia construções em terrenos que simultaneamente alega pertencerem ao domínio público, exercendo competências de autoridade urbanística sobre propriedade que considera sua. Esta prática revela-se juridicamente incompreensível: como pode o Estado licenciar construções em terrenos de domínio público? Como pode cobrar taxas pelo exercício de direitos de construção sobre terrenos que alega serem seus? A concessão de licenças urbanísticas pressupõe necessariamente o reconhecimento da titularidade privada do terreno onde se pretende construir. Síntese das Contradições Sistémicas A conjugação destas práticas administrativas cria um quadro de contradições sistémicas que mina completamente a credibilidade jurídica do regime de domínio público sobre margens:
A Dimensão Constitucional: Fundamentos para Impugnação A análise constitucional do regime vigente revela múltiplas vulnerabilidades que podem fundamentar a sua impugnação junto dos tribunais competentes Violação do Direito de Propriedade O artigo 62.º da Constituição da República Portuguesa consagra o direito à propriedade privada como direito fundamental. A reclassificação de terrenos privados como domínio público, sem observância dos procedimentos constitucionalmente exigidos para a expropriação, constitui violação direta deste preceito. A Constituição estabelece no seu artigo 62.º, n.º 2, que "a requisição e a expropriação por utilidade pública só podem ser efetuadas com base na lei e mediante justa indemnização". A ausência de qualquer procedimento expropriatório ou pagamento de indemnização configura expropriação encoberta inconstitucional. Violação do Princípio da Proporcionalidade O artigo 18.º da Constituição exige que as restrições aos direitos fundamentais se limitem ao necessário para salvaguardar outros direitos constitucionalmente protegidos. A aplicação uniforme de faixas de proteção, independentemente das características específicas de cada terreno, viola este princípio em múltiplas dimensões. A medida revela-se inadequada porque ignora as particularidades concretas de cada situação. Demonstra-se desnecessária quando aplicada a terrenos que não apresentam relevância para os objetivos de proteção ambiental. Configura-se desproporcionada ao impor restrições absolutas quando medidas menos gravosas poderiam alcançar os mesmos fins. Violação da Segurança Jurídica e Proteção da Confiança O princípio do Estado de Direito, consagrado no artigo 2.º da Constituição, engloba as dimensões da segurança jurídica e proteção da confiança legítima. As múltiplas contradições entre a alegação de domínio público e a prática administrativa sistemática geram expectativas legítimas consolidadas sobre o reconhecimento da titularidade privada. A conduta administrativa do Estado - através da tributação, cadastro, licenciamento e cobrança de taxas - cria uma situação de reconhecimento tácito, mas inequívoco da propriedade privada que se prolonga há décadas. Os proprietários desenvolveram confiança legítima na manutenção dos seus direitos com base nesta conduta administrativa persistente e coerente. O princípio da proteção da confiança impede que o Estado, após décadas de reconhecimento prático da propriedade privada, venha invocar um alegado domínio público que a sua própria conduta contradiz sistematicamente. A invocação tardia de prerrogativas dominiais, após prolongado reconhecimento da titularidade privada, viola os princípios fundamentais da boa-fé administrativa e da segurança jurídica. Esta contradição sistémica compromete a confiança dos cidadãos nas instituições públicas e viola o princípio da coerência administrativa, elemento essencial do Estado de Direito. O Estado não pode manter condutas contraditórias sobre a mesma matéria sem comprometer a sua própria credibilidade jurídica e a segurança das relações jurídicas. Conclusões e Perspetivas A análise histórica e constitucional do regime de domínio público sobre as margens dos cursos de água revela um sistema construído sobre fundamentos historicamente questionáveis e constitucionalmente vulneráveis, agravado por contradições práticas que o tornam juridicamente insustentável.
A interpretação expansiva de um decreto oitocentista, concebido para regular vias de comunicação numa economia pré-industrial, resulta na aplicação contemporânea de um regime que compromete direitos fundamentais sem adequada justificação constitucional. As contradições práticas evidenciadas pela conjunção de múltiplas condutas administrativas incompatíveis demonstram que o próprio Estado reconhece, de forma sistemática e prolongada, a natureza privada destes terrenos. A manutenção simultânea de cadastro, tributação, licenciamento urbanístico e cobrança de taxas constitui reconhecimento inequívoco da titularidade privada que torna juridicamente impossível a posterior invocação de domínio público. Esta situação ultrapassa o âmbito das meras contradições administrativas, configurando uma negação prática do regime jurídico formalmente estabelecido. O Estado não pode exercer simultaneamente poderes de reconhecimento, tributação e autorização sobre propriedade privada e alegar posteriormente que os mesmos terrenos pertencem ao domínio público. A resolução desta problemática exige uma abordagem que reconheça a realidade jurídica criada pela conduta administrativa prolongada do Estado. As expectativas legítimas geradas por décadas de reconhecimento prático da propriedade privada não podem ser contrariadas mediante a invocação tardia de prerrogativas dominiais que a própria conduta estatal contradiz. O equilíbrio entre proteção ambiental e respeito pelos direitos fundamentais deve ser alcançado através de instrumentos constitucionalmente adequados e juridicamente coerentes, não mediante a perpetuação de um sistema historicamente infundado, constitucionalmente duvidoso e praticamente contraditório. A jurisprudência constitucional oferece fundamentos sólidos para questionar este regime, reforçados pela evidência da conduta administrativa contraditória do Estado. A conjugação dos argumentos históricos, constitucionais e práticos cria um quadro jurídico robusto para a impugnação judicial do sistema vigente. O futuro do direito dos recursos hídricos em Portugal depende da capacidade de conciliar a proteção do ambiente com o respeito pelos direitos fundamentais e pela coerência jurídica, numa síntese que honre tanto as exigências constitucionais quanto os princípios fundamentais do Estado de Direito. |
AutorO meu nome é Armando A. Oliveira, sou solicitador de 1993, agente de execução desde 2003 e técnico de cadastro predial desde 2024 Archives
Maio 2025
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