Antes de passar ao tema, começo por assinalar que os atuais dirigentes da OSAE nada poderiam ter feito para travar as desastrosas propostas de alteração ao Estatuto e à Lei dos Atos Próprios de Advogados e Solicitadores. O governo, sustentado nas presumidas ordens superiores da Europa, entendeu cortar a direito, atingindo a generalidade dos profissionais liberais subordinados às associações públicas profissionais. No essencial concretiza a anunciada desconsideração das Ordens Profissionais, algumas das quais – em abono da verdade – fizeram tudo para esquecer qual o seu papel primordial, servindo amiúdo de rampa de lançamento de ataques ideológicos e de ambições políticas.
Assim, paulatinamente, as Ordens Profissionais vão sendo substituídas por entidades reguladoras, institutos públicos, direções gerais ou, até, pela acreditação junto de um número indeterminado de empresas que “certificam” competências. Sob o ponto de vista teórico, acabada a licenciatura, a pessoa estará em condições de entrar no mercado de trabalho e, acreditando dos teólogos da economia, caberá exclusivamente ao mercado regular quem é bom ou menos-bom. Acredita-se que o recém-licenciado saberá perceber se tem ou não unhas para tocar determinada música e, se porventura tocar mal, então o mercado irá encarregar-se de o eliminar, ou dito de outra forma, o músico deixará de ter audiência. É claro que o risco de não saber tocar a música varia em função do instrumento. Se o médico falhar a nota, pode matar o paciente e isso parece que é grave. Mas se o arquiteto fizer um projeto feio, não há grande problemas, pois gostos não se discutem e o que hoje é feio amanhã é bonito, ou vice versa. Quando falamos dos “direitos” as coisas ficam, por assim dizer, no meio termo, pois um mau conselho não é imediatamente visível e em muitos dos casos, até pode ser que o cliente nunca perceba. No que aos advogados diz respeito, vai-se enraizando a ideia de que são uns oportunistas que só estão ali para tentar safar os culpados e para colocar problemas no regular funcionamento da justiça. Na Russia, por exemplo, a taxa de condenação em processo penal é muito próxima dos 100%, certamente porque os advogados foram colocados no seu devido lugar…e assim a justiça funciona como deve ser. Quanto solicitadores são uma figura pouco relevante para a generalidade dos cidadãos, já que a sua atividade se desenvolveu tradicionalmente junto daqueles que tinham algum património imobiliário e questões de heranças. Até 1999 para ser solicitador não era necessário curso superior, cabendo à então Câmara dos Solicitadores, a responsabilidade (autoassumida) de formar os candidatos a exame. No virar do século passou a ser exigido bacharelato em solicitadoria (entretanto transformado em licenciatura). A criação do bacharelato / licenciatura em solicitadoria tem contexto histórico muito específico, cuja análise poderá hoje ser irrelevante, mas que se mostrou imprescindível na transformação da Câmara em Ordem. É inquestionável a importância da formação superior, mas também sabemos os graves problemas que padece o sistema de ensino, ele próprio também subordinado à disciplina económica, que privilegia a importância do “negócio”. Assim, como qualquer outro negócio, está subordinado às leis da procura e da oferta, cabendo ao vendedor mostrar as vantagens do produto e com isso cativar o máximo de clientes, sempre que possível escondendo a “bula”. A explosão das licenciaturas em solicitadoria ocorreu em paralelo com a reforma da ação executiva e generalidade dos candidatos procurava alcançar a maravilhosa vida de agente de execução. Ainda hoje, uma década depois de inexistir trabalho que permita sustentar cerca de 1000 agentes de execução, continua a anunciar-se a o eldorado de ser agente de execução. Segundo o site https://inspiring.future.pt/ existem 13 licenciaturas em solicitadoria no ensino público para 549 vagas. No privado são 4 as licenciaturas para um total de 215 vagas. Em direito temos 7 cursos públicos para um total de com 1271 vagas. Nos privados temos 11 cursos, para um total de 1181 vagas (acrescem as vagas da universidade católicas que não consta o número). Na globalidade das licenciaturas (direito e solicitadoria) a solicitadora representa cerca de 18% das vagas. Porém, no ensino público, representa 37%! Em suma, fico com a sensação de que a licenciatura em solicitadoria (ensino público) é procurada por aqueles que não conseguiram aceder à licenciatura em direito do ensino público, e não tem capacidade económica para a licenciatura em direito no ensino privado. Questionar a utilidade da licenciatura em solicitadoria não é matéria nova, mas a proposta de alteração à lei dos atos próprios torna evidente a premência do debate, quando mais não seja para que não se leve ao engano (anualmente) mais de meio milhar de jovens. Digo sem qualquer reserva “ao engano”, uma vez que as opções / saída profissionais da licenciatura em solicitadoria são drasticamente inferiores à disponibilizada pela licenciatura em direito, quer na atividade liberal, mas muito particularmente na função pública. Se para os advogados em geral estas alterações são muito más, para os solicitadores são dramáticas. Para os advogados mantém-se – ainda – a reserva do mandato forense. Mas para os solicitadores estão escancaradas as portas à procuradoria extrajudicial. Não será difícil perceber que a disputa pela sobrevivência – até agora disputada com advogados, notários e imobiliárias – vai passar a fazer-se num mercado totalmente aberto. Pensei, confesso, que ao abrirem-se as portas à procuradoria extrajudicial, fossem eliminadas muitas das restrições à atividade, nomeadamente algumas das incompatibilidades, os limites à angariação, a fixação de honorários e à publicidade. Mas pelos vistos não, ou seja, vamos para o tartan de sapatilhas calçadas, mas os novos concorrentes vão montados numa mota. Os solicitadores são graciosos a correr, mas os demais vão chegar mais rápido. As críticas à proposta e à forma como foi apresentada pode cheirar a corporativismo, mas confesso só me vem ao pensamento as palavras do meu Pai… “…o Estado não é uma pessoa de bem.” Posto isto, para que serve a licenciatura em solicitadoria! O melhor é converterem-se rapidamente em licenciaturas direito… e agora já tem argumentos para convencer a tutela (e a A3es):
Finalizo com uma brevíssima nota quanto às formas de luta… Os Solicitadores não podem fazer greve e os Agentes de Execução, se negarem a realização de atos, estão sujeitos à ação disciplinar, nomeadamente a multas, seja as aplicadas pelos tribunais, seja pela CAAJ. Quanto aos Advogados… …o Estado nos últimos anos tomou-lhes o pulso:
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Tive ontem conhecimento, através do comunicado da Ordem dos Advogados, da proposta de alteração à Lei dos Atos Próprios de Advogados e Solicitadores, que não é propriamente uma surpresa, pois os sinais já permitiam adivinhar o que por aí vinha.
Assinalo que não conheço o teor das propostas de alterações ao Estatuto da Ordem dos Solicitadores, mas perante a proposta de alteração à Lei n.º 49/2004, de 24 de agosto a atividade que “ainda” fica reservada em regime de (quase) exclusividade ao Advogados e Solicitadores resume-se ao mandato forense… e nada mais, sendo que o mandato forense dos solicitadores é muito limitado. A nova realidade prevê que a consulta jurídica passe a ser “open source”, ou seja, qualquer pessoa poderá prestar serviços de consulta jurídica e exercer o mandato remunerado fora dos tribunais, sem que esteja subordinado a qualquer tipo de prévia aferição de conhecimento, sem tutela fiscalizadora ou disciplinar. Em suma, uma empresa com alvará de construção civil poderá prestar consulta jurídica, correndo o risco de perder o alvará de construção se não cumprir as regras ligadas à construção, mas sem que possa ser sancionada se não prestar bons serviços de procuradoria… Dito de outra forma, é como se pudesse cobrar por aconselhamento médico (consulta jurídica) e prescrever medicamentos (mandato extrajudicial) estando, no entanto, impedido de entrar no bloco operatório (mandato forense). E porque não? Mas já agora, por que que raio é que um projeto tem de ter o termo de responsabilidade de arquiteto e de um engenheiro civil? E as contas de uma empresa têm de ser subscritas pelo contabilista ou um revisor de contas? E já agora, porque diabo o certificado energético tem de ser feito por um técnico habilitado e a avaliação de um imóvel por um perito “registado” na CMVM? Ainda que possa não ser desta vez, não tenham dúvidas que o futuro já está aí e a pergunta que se deve fazer é… para que servem afinal as ordens profissionais? |
AutorO meu nome é Armando A. Oliveira, sou solicitador de 1993, agente de execução desde 2003 e técnico de cadastro predial desde 2024 Archives
Novembro 2024
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