Há poucos dias estive a mostrar aos meus filhos um pequeno exemplo do que é a evolução tecnológica. Mostrei-lhes exemplos de automóveis desde 1904, data de nascimento do meu Avô, até aos dias de hoje, passando por 1938 (nascimento do meu Pai), 1969 (o meu próprio nascimento) e 1997 (nascimento do mais velho dos meus filhos).
Em 1904 o automóvel era uma curiosidade para os abastados, nos anos 60 já era um produto de consumo acessível à maioria dos trabalhadores europeus. Em 1904, um condutor de um carro a cavalo não conseguia conceber ou aceitar que, em pouco mais de duas décadas, o animal de tração deixaria de ter relevância no transporte de pessoas e de bens. Em agosto a Tesla começou a entregar o seu novo modelo 3, um veículo exclusivamente elétrico, com mais de 350 km de autonomia e preparado para condução autónoma de nível 4 (ainda é exigido que o condutor supervisione o desempenho do seu automóvel, apesar de este ser tecnicamente capaz de monitorizar tudo o que se passa à sua volta). As inovações introduzidas por esta marca não só têm forçado os demais construtores automóveis à revisão das suas estratégias, como têm alertado os grandes fundos de investimento para a necessidade de virem a reequacionar as suas estratégias. Entramos agora no campo de futurologia (próxima). Pensemos no o seguinte: Na Europa, a utilização média de um automóvel equivale a cerca de 10 horas por semana, o que representa cerca de 10% do tempo disponível (não considerando o período noturno). Naturalmente que não vamos ter uma redução de veículos de 10 para 1, pois há necessidade de assegurar transporte nos picos de utilização. Mas não será difícil perceber que vamos ter inovações na área da partilha de itinerários, redução nos tempos de viagem, eliminação do tempo necessário ao parqueamento, estacionamento, não sendo demasiado otimista (ou pessimista conforme o ponto de vista) dizer que o número de veículos sofrerá uma redução para uma terça parte. Esta redução de veículos vai, de forma evidente, influenciar o número de lugares necessários nos grandes centros urbanos. Com a massificação da condução autónoma, o cidadão vai deixar de ser condutor e vai perder, gradualmente, a sua ligação emocional ao veículo. Vai deixar de o olhar como uma coisa sua, mas antes como um serviço. Vai privilegiar a eficiência e o custo do serviço, deixando de dar relevância à marca. O estatuto social que hoje é atribuído ao veículo vai desaparecer. Pessoas nascidas em 2017 irão considerar dispensável a licença de conduzir e, muito provavelmente, não irão equacionar a compra de um automóvel. Posto isso, muito vai mudar: Arquitetura, urbanismo, seguros, saúde, diversas profissões… A redução do número de veículos e sua “independência” do um condutor, vai também influenciar a organização das cidades. Grandes avenidas e circulares vão perder a sua função, muitos dos espaços cobertos de alcatrão vão ser reconvertidos para outros fins, eventualmente jardins ou até hortas urbanas. A “garagem” não terá relevância na valorização de um imóvel. Os pisos subterrâneos dos edifícios vão perder a sua atual função. Na escolha de um apartamento vamos valorizar a exposição solar da cobertura do prédio, pois é relevante na produção de energia. A paulatina substituição dos combustíveis fósseis e o previsível advento de baterias de grande capacidade vai implodir toda a cadeia de distribuição de combustíveis. A maior fiabilidade dos motores elétricos, com significativa diminuição de partes móveis, vai afetar toda a rede de manutenção automóvel. A rede de distribuição de eletricidade vai ter que se adaptar aos picos de carga, mas também à produção de energia por parte dos privados. Taxistas e condutores de pesados vão tornar-se gradualmente profissões para nichos específicos. Vamos encará-los tal qual hoje olhamos para um condutor de uma charrete. A Uber acabou de anunciar a compra de 24.000 volvos XC90 – sim vinte e quatro mil – para a sua frota de veículos autónomos. Quer isto dizer que, aos taxistas que se manifestam contra a Uber se vão juntar os futuros ex-condutores da Uber… O erro humano, que contribui para cerca de 95% dos acidentes automóveis, vai desaparecer e com isso o número de mortos na estrada, o volume de indemnizações. A indústria seguradora vai também ser afetada! Até as empresas que vendem sinalética na estrada se vão ressentir, pois a esmagadora maioria dos sinais passam a ser inúteis… A condução autónoma é construída a partir de um conjunto de fatores, com maior ou menor relevância, sendo que alguns destes não têm uma influência imediata, mas contribuem de forma significativa para a utilização prática de um veículo autónomo. A capacidade das baterias, a diminuição do tempo de carga, a redução dos custos de produção, a eficiência e eficácia do motor elétrico, evolução dos inúmeros sensores (laser, câmaras, gps, inércia, radar lidar, fotogrametria, etc), partilha de informação entre sistemas e o aumento da capacidade de processamento da informação, são alguns dos pontos chaves neste novo caminho. O volume de informação é de tal maneira gigantesco que se torna impossível a um humano processar ou sequer compreender tudo quanto está disponível. Toda esta informação passa a ser analisada por sistemas de inteligência artificial, que conseguem, nesse oceano de dados, descobrir novos padrões e soluções, inclusive para problemas que nem sequer sabíamos existir! E o que é que tudo isto tem a ver com a Justiça? Sendo a justiça um elemento agregador e organizador da sociedade, sem dúvida nenhuma que a vai também ter que reagir e acompanhar o desenvolvimento, quanto mais não seja na criação de regulamentação que sustente esta nova sociedade. Mas não é só… Imaginem um acidente entre dois veículos, ambos repletos de sensores e câmaras que registam os mais ínfimos pormenores da cadeia de acontecimentos. O volume de informação que é disponibilizado, a comparação com os inúmeros casos “vividos” por outros sistemas permitirão que, em alguns instantes, seja disponibilizada uma análise da responsabilidade. Na maior parte dos casos, o sistema vai “garantir” de quem é a responsabilidade e, tendo em consideração que cada um dos veículos conseguirá avaliar o custo da reparação, irá fixar o valor da indemnização. A “justiça humana” só vai intervir em casos marginais, tal e qual o condutor da “charrete”, se pensam este cenário é um futuro longínquo, atentem… Se me perguntarem qual é, hoje, o maior sistema de resolução de conflitos, posso dizer, sem grande margem para erro, que é o Paypal. Este e outros sistemas semelhantes de “pagamentos” são grandes sistemas de confiança em que, ao comprador, é dada uma garantia de arbitragem informal e a devolução do valor pago. Em 2015, o Paypal realizou mais de mil milhões de transações num único mês. Se 0,001% dessas transações derem origem a um conflito, vamos ter mais de 10.000 incidentes num único mês. Quantas pessoas seriam necessárias para tratar estes processos? A realidade é que estes “processos” são tratados, na sua grande maioria dos casos, com uma base algorítmica cada vez mais especializada e complexa, a qual vai ter em consideração não só os dados específicos de cada transação e da reclamação, mas também outros fatores, tais como o histórico e localização de cada um dos intervenientes, a natureza do produto em causa, o número de disputas sobre produtos idênticos, etc. Os modelos informáticos vão tornar-se, gradualmente, mais “inteligentes” e vão auxiliar o cidadão nos temas mais diversos, incluindo nos temas de “justiça”. Os profissionais que servem de interpretadores e mediadores das mecânicas burocráticas e das hermenêuticas de determinadas atividades vão ter que encontrar um novo papel, vão ter que se adaptar sob pena de se tornarem uma figura decorativa e marginal na sociedade. Segundo o Conselho Nacional de Justiça Brasileiro a justiça de 1ª instância só consegue resolver anualmente 27% da demanda pelo que para dar “vazão ao estoque de processos seria necessário cessar a distribuição por quase 4 anos”… Imaginemos que encontramos uma solução de software que analisa os processos pendentes e propõem uma solução para 80% dos casos com 10% de margem de erro e 10% do custo. Os juristas com toda a certeza que não aceitam uma proposta desta natureza… e o cidadão/contribuinte será que não? Ao longo dos últimos 15 anos, os solicitadores e a Ordem têm conseguido não só conviver com a evolução tecnológica, mas aproveitar novas oportunidades, contribuindo para inovadoras formas de olhar e lidar com a justiça. As ferramentas informáticas são estruturais no desenvolvimento da profissão e no salto para a integração de soluções de inteligência artificial. Este é um caminho que temos forçosamente de trilhar. Resta decidir …
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AutorO meu nome é Armando A. Oliveira, sou solicitador de 1993, agente de execução desde 2003 e técnico de cadastro predial desde 2024 Archives
Novembro 2024
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