Com a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 72/2023, que aprova o novo Regime Jurídico do Cadastro Predial (RJCP), o sistema jurídico português passa a reconhecer formalmente o primado do cadastro predial sobre o registo predial no que respeita à localização, configuração e área dos prédios. Este diploma, ao estabelecer que os dados de caracterização de um prédio constantes da carta cadastral gozam de presunção legal (real localização, configuração e área), inaugura um novo modelo de articulação entre os dois sistemas. O registo deixa de comandar e passa a integrar! Esta afirmação, com tom intencionalmente provocatório, poderá ser interpretada como uma diminuição da importância do registo predial. Porém, ao contrário do que se possa pensar, o efeito é precisamente o contrário: O registo predial fica significativamente valorizado quando se estabiliza o objeto de registo. É certo que o artigo 16.º do RJCP relativiza o poder do conservador quanto à componente geométrica do prédio, mas não anula o seu papel central na tutela dos direitos reais. A mudança é substancial, mas está longe de representar uma subordinação do registo ao cadastro. Como já referi em 31 de março de 2024 (link), é imperativo reconhecer que “encontrar um equilíbrio entre os diversos intervenientes e garantir uma coordenação eficaz pode ser crucial para evitar conflitos e prevenir disfunções do sistema”. Para alcançar esse equilíbrio é imprescindível que todos os envolvidos se juntem para enfrentar e discutir as diferentes realidades fundiárias. Só assim será possível definir novos modelos teóricos que sirvam para resolver os problemas concretos e produzir regulamentação realista. UM CASO PRÁTICO Em resultado de uma operação de conservação de cadastro, o prédio cadastrado A foi fracionado em dois novos prédios, B e C. O fracionamento resulta do atravessamento por caminho público. Pode o Conservador do Registo Predial sindicar o fracionamento ou limita-se a promover a desanexação do prédio C ( e atualização da descrição do prédio B)? Diz-nos o artigo 68.º do Código do Registo Predial que o conservador verifica:
Resta, então, verificar a validade do ato contido no título — neste caso, o fracionamento — mantendo-se o poder/dever do conservador de o fazer. Porém, verificar a validade do ato não é sindicar a forma como se alcançou o ato em si Poderá o conservador exigir, por exemplo, a apresentação de comprovativo de integração no domínio público (habitualmente, uma certidão camarária)? A resposta é simples: Não pode exigir, pois o suporte da decisão de fracionamento no cadastro é da exclusiva responsabilidade do cadastro, beneficiando da presunção para todos os efeitos legais. Pode (e deve) a Conservatória aferir se o ato, no caso o fracionamento por via pública, leva (ou não) à abertura de uma nova descrição predial, ou seja, se passam a ser duas duas parcelas delimitadas de território juridicamente autonomizadas. Quanto via pública, coube ao Técnico Cadastro apreciar se esta existe, sejam através de suportes solenes (por exemplo uma certidão emitida propositadamente pelo órgão autárquico competente) ou menos solenes (informação geográfica da rede rodoviária, informação cartográfica em instrumentos de gestão territorial) ou, até, porque existem elementos físicos que evidenciam a utilização pública (rede de saneamento, iluminação pública, sinalização rodoviária, toponímia, etc) Os Técnicos de Cadastro devem ter sempre presente que o exercício das suas funções é fundamental, envolvendo não só um significativo grau de autoridade, mas também elevada responsabilidade. O poder que lhes está conferido exige mais do que perícia e conhecimento — exige também ponderação e integridade.
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AutorO meu nome é Armando A. Oliveira, sou solicitador de 1993, agente de execução desde 2003 e técnico de cadastro predial desde 2024 Archives
Maio 2025
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